Histórias do Cotidiano

A série “Histórias do Cotidiano” surgiu com o objetivo de reunir as produções literárias da comunidade universitária, tornando acessível o conhecimento produzido dentro da universidade para o maior número de pessoas. Na sua primeira edição foram selecionados poemas, contos e crônicas originais para a publicação nos canais oficiais da Biblioteca Universitária da UFSC, visando incentivar a criação literária.

Confira as obras selecionadas:

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. Na foto ao lado esquerdo há uma montanha, ao centro há o sol com uma nevoa fina escondendo montanhas ao fundo. Por cima da foto, iniciando no lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Tarde vil, e abaixo está escrito: Autor: Joel de Souza. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo azul claro.

Tarde Vil

 Contemplando o dia
Que cadencia o sol nascente
Aquecendo a alma e atiçando a aura
Que avança fugaz sobre a meia tarde vil
Escolhendo as horas tristes
Que arrebatadoras ferem apunhalando
Corações atribulados
Que desavisados pela brisa inebriante
Atordoados magoados
Finalizam amorosamente
A noite vã no divã
Dos pensamentos
Teus

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. Na foto há uma pessoa aparecendo apenas os cabelos compridos, ombros, e suas mãos enquanto lê um livro. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Poema de quarentena, e abaixo está escrito: Autor: Lavine Lima. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo azul claro.

Poema de Quarentena

Imóvel, o momento pousa
nos umbrais da janela,
e a manhã – inexpressiva –
tece a primavera em desencanto.

O que move
a minha consciência
do instante?

Em dias assim,
tudo são ruínas
contempladas pela evasão do Tempo
e dos pássaros sibilantes –
recordação memorável
de que ainda há vida
para além das paredes brancas
e distantes.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. Na foto há uma mão segurando um relógio e ao fundo, desfocado, aparece o mar. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Um tal pensamento, e abaixo está escrito: Autor: Isadora Ciarcos. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo bege.

Um Tal Pensamento

Minha vida habituada a ser planejada.
São muitos sonhos dentro de um mortal. Estou aprendendo a deixar de lado os sonhos
que não são meus.
Difícil! Às vezes doloroso, confesso. Mas assim eu fico mais leve?
Corro atrás do que realmente faz parte do meu íntimo, ajuda a construir minha
personalidade.
Tenho caminhos distintos e duvidosos. Não tenho tempo para abdicar.
O mundo precisa de gente mais sensível, mais corajosa, que goste de abrir a mente e
vagar nas entrelinhas do autoconhecimento.
Se libertar do que não lhe pertence e desmontar seus personagens inventados a cada
apresentação da peça vida.
Viver a sua própria peça, mostrar a transparência do seu sorriso com todo o amor que
carregar no seu peito.
Viver sem medo do diferente, escolher às vezes não fazer escolhas. Aceite o tal do
destino.
Aos poucos modelando conforme a música toca, um ritmo sagaz.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. Na foto está noite, há montanhas, pinheiros e um céu estrelado e a lua ao centro está cheia e iluminada. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Fria noite, e abaixo está escrito: Autor: Rosângela T. Calza. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo azul claro.

Fria noite

As sombras da noite desaparecem lentamente,
os primeiros raios de sol prolongam-se entre as frestas da janela.
É de manhã. Um outro amanhã.
O amanhã de ontem foi engolido pela tarde, que foi engolida pela noite.
Levanto-me da cama vagarosamente.
Foi uma longa noite…
Triste… fria… doída… angustiante,mesmo
Banho-me.
Pelo ralo do banheiro toda a angústia sentida desce.
A esperança de novo nasce e cresce…
Tic-tac… tic-tac… tic-tac…
A noite chega novamente
Tudo de novo lentamente apodrece…
A esperança, outra vez, desaparece.
Uma longa noite pela frente…
Uma noite que eu queria, pelo menos uma vez, fosse diferente.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. Na foto aparece o rosto lateral de um homem gritando, e o restante da imagem é preta. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Minime, e abaixo está escrito: Autor: Gustavo Simas da Silva. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo bege.

minime

agredir é rebaixar
a razão para
a 2a divisão
do campeonato
do pensamento

agredir é elevar
a tensão
alternada de berros
além
dos 220 volts
rms de um nível
elétrico que arremesse
a empatia para fora
e descarte
-a
do gráfico de descartes
nem que tente ou rene
para mantê-la potente
além
de agora

agredir é desistir
da solução em que
ambos os lados vencem
abdicar do predicado
para beneficiar o sujeito
e afiliados que veem
o pacífico obsoleto
o malfeito enganado

reduzir-se para um mini-me
nomimimi
dizer o último
ou fazê-lo vivo
operar para que haja
o contínuo ciclo
do oprimido a tornar-se
opressor do próximo visto inimigo
criado pelo ego antigo
que aterra a possibilidade
de comunicação e joga
a harmonia pro escanteio

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. A foto é em tons de cinza e há vários prédios. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Urbanizada, e abaixo está escrito: Autor: Nathalia S. Mendez. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo bege.

Urbanizada

Ana acordou às seis da manhã, hesitou ao levantar, sentiu os músculos se alongarem e os ossos estralarem conforme se espreguiçava e via as sombras difusas que se formavam na parede do quarto a meia luz. Sentiu o tecido do tapete nas solas dos pés enquanto arrumava a cama, calçou pantufas macias e se encaminhou para a cozinha. Colocou a água para ferver e deixou a garrafa térmica pronta para passar o café. Voltou para o quarto e sentiu o frio da superfície de vidro da porta da sacada. Abriu-a e deixou a brisa matinal entrar, os pelos de seus braços se arrepiaram com o novo ar que abria caminho pelo abafado do quarto, seus olhos lagrimejaram com a luz do sol nascente. O barulho dos carros estava distante, mas já estava ali, como um burburinho constante. Deixou o ar entrar em seus pulmões e a pele se acostumar com a temperatura, voltou para a cozinha, passou o café. Escolheu entre suas xícaras preferidas enquanto o cheiro de café fresco aquecia seu coração. Voltou para a sacada com a xícara na mão direita e sentou-se na cadeira vermelha. Olhou o tráfico que já começava a se formar, engoliu o café, queimou a língua, bateu o braço direito na superfície de vidro da porta da sacada. Tropeçou no tapete e amaldiçoou a pantufa. Correu para a cozinha, despejou água na xícara, que se espalhou pelo pijama. Contraiu os músculos com o nervosismo e não achou a roupa que queria na meia luz.
O piloto automático de Ana levantou às seis da manhã, ela mesma só foi acordar com a primeira ligação que recebeu no escritório.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. A foto se passa no entardecer. No centro da foto há uma rua, e ao longo da rua, há bancos, gramados e prédios. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Vida na rua, e abaixo está escrito: Autor: Milena Amorim Zuchetto. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo bege.

Vida Na Rua

Você me pergunta como eu vim parar aqui
Você não entende como tudo aconteceu
Te respondo perguntando se você alguma vez já desistiu?
Você saberia me dizer como é ser visto mas não ser percebido?
Você poderia me contar porque quando eu falo ninguém dá ouvidos?
Você que sabe tanto da vida
Que tem tanto para me contar
Me explique porque da vida e porque aqui eu vim parar!

Se eu sei porque vim parar neste lugar
Que tanto me faz mal e me faz chorar
Não sei explicar… Só sei que aqui cheguei e não sei mais como sair
Então me explica você que tem tudo resolvido como fazer para sorrir em meio a tanto sofrimento

Me explica porque quando te olho não me encontro em ti
Me ensina se há no escuro algo que traz claridade
Clareia meu caminho porque de onde eu vejo só vejo precipícios
Então me explique você, porque aqui é tão frio?
Porque aqui é tão difícil de dormir?
Porque aqui a fome não é só de comida, é também de motivos

Me orienta sobre o traço torto que escolhi percorrer
Me ensina a dormir em cama macia e banhar em água morna
Me ensina a apreciar a vida porque nem sabor eu sinto mais
Me sinto morto, invisível, nada
Me sinto solto, livre, morto, esquecido

Então, peço
Eu suplico
Me mostra se há saída para alguém que nem ao menos existe
Me ensina a sair de um beco sem saída em que eu nem escolhi chegar

Não pode…
Você não sabe o que é ser da rua, ser rua, e rua ser você
Você não sabe o que é ter fome e vontade de ser
Você não sabe o que é ter medo de começar a escurecer
Você não sabe o que é ter frio e não poder se aquecer

Então não venha você de roupas quentes e pele bonita, me ensinar sobre a vida de rua
Quem passeia não é dela
Quem caminha não a conhece
A rua é dona de nós
E dela faço a minha vida um tentar sobreviver.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. A foto possui tom dourado e no centro há uma criança correndo e sorrindo. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Minha infância, e abaixo está escrito: Autor: Jéssica Soares Lopes. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo azul claro.

Minha infância

Eu acordava naquelas manhãs azuis cujo fio sépia invadia quente
A frestinha transparente no teto de zinco fazia um tectectec de passarinho
Essa janela imaginada e minúscula, meu maior medo noturno
Mas a manhã chegava sempre

Me esgueirando pelo corredor de cimento cor de sangue e pó
Sempre a surpresa do “já acordou?” vindo da cadeira de balanço logo atrás de mim
Aquele corpo frágil, branquinho, mal ocupando a sala repetia
O que eu viria a ouvir de minha mãe e avó

Ele, vaqueiro e caminhoneiro, híbrido de um nordeste que já nem sei se existe
Ela, costureira e mãe ausente, dureza de máquina bem azeitada pelo trabalho constante
Também vendia bananas pois um coice de cavalo ou de boi
O deixou assim, o vô que eu cresci vendo triste

Naquelas horas primeiras era difícil separar sonho e realidade
E vejo ainda aquelas pessoas que me acordavam de madrugada
As lágrimas escorrendo na rede, o medo de morrer
O terror da velhice aos seis anos de idade

Pardais cantando açoitando os dias, o abatedouro logo em frente
A calçada onde não escorria nada, apesar de tudo
O morro de terra rosada bom pra areiar panela
Não tinha cheiro de boi mas tinha crânios de boi
Eu voltava correndo de lá

As pedras lisas e escuras da rua desciam até a praça
Onde tinha a feira de bichos amarrados, galinhas de ponta-cabeça
Tentando ver o mundo do mesmo jeito de sempre
A brincadeira de estátua entre os paus e tiras de borracha
Deixada pelos vendedores já de noite

Não podia ficar muito na rua, “vai levar uma taca”, alertava o vôvô
Pela manhã mesmo. E ia pro quintal que cheirava forte a pé de mamão
E tinha plantas demais e bastante esterco e um muro baixinho
Que eu nunca vi o que tinha do outro lado

Girava o moinho de milho
Entrava no quarto que devia ser proibido
Portas muito altas e finas, uma balança de metal amarelo
Girava a máquina de cobrir botão
Cuja mesa mudava muito de lugar
Mas tinha sempre a lamparina perto

E a noite vinha de novo me cobrir de bichos pretos que me olhavam lá de cima…
De manhã o tectectec repudiava o medo e deixava a dúvida pra depois.

Hoje me agarro como um mato nas frestas de calçadas
Como pé seco e retorcido da caatinga
Raízes profundas que a tudo resistem
O vento sul levando longe a memória, sementes voadoras

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. A foto é em preto e branco e há dois músicos em uma rua. Ambos aparecem do peito para cima, a mulher está de cabelos presos e toca flauta doce e o homem está de boina e toca violão. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Madame Judite, e abaixo está escrito: Autor: Hoyêdo Nunes Lins. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo bege.

Madame Judite

Quem passasse rápido mal perceberia. Ao lado do portão que dava para o terceiro sobrado da rua havia uma pequena placa com esta frase: “Madame Judite – cartas e linhas da mão – subir a escada e tocar a campainha”.

Madame Judite era a marca comercial de Maria Auxiliadora de Souza Barth, cinquentona, tataraneta de escravos e filha de um falecido sargento, descendente de alemães, que fora músico da banda da Polícia Militar. O pequeno sobrado ficara-lhe de herança e era compartilhado com a mãe e uma filha que cursava contabilidade numa faculdade privada. Três gerações bem espaçadas, pois Marilda resultara de uma aventura vinte anos antes, quando Madame já era madura, e a mãe recentemente completara oito décadas.

O dinheiro era curto, mesmo somando a pensão recebida pela idosa e a remuneração da filha no estágio em escritório de médio porte: Madame aposentara-se como professora da rede pública estadual. Daí serem bem vindas as contribuições, em geral minguadas, dos que acorriam exibindo as palmas das mãos ou pedindo para “dar as cartas”. Gente ansiosa, querendo acreditar.

Madame Judite, seja pelo traquejo adquirido em sala de aula ou pela convivência com a música do pai, era mestre em utilizar uma voz ao mesmo tempo suave e solene, exalando uma seriedade que às vezes beirava a circunspecção e fazia os clientes se remexerem apreensivos. Com o passar do tempo a modulação da sua voz ficara cada vez melhor, e Madame não tinha dúvida de que por trás disso estavam, em primeiro lugar, as incontáveis horas de audição da prática musical paterna.

O pai tocara saxofone na banda, mas era a flauta que preferia, entre diversos instrumentos de sopro com os quais tinha maior ou menor familiaridade. O som do flautista fora, assim, o mais ouvido em casa, e Madame cresceu embalada por límpidas, doces e belas frases musicais que nunca saíram da sua memória. Não lhe constrangia ter consciência de que a arte do pai agora amparava sessões de, para dizer o mínimo, puro ilusionismo. A necessidade, muitas vezes, costuma pedir licença à virtude.

Naquele sábado, Marilda descera para destrancar o portão, como de hábito, embora não se tratasse de dia propício. Perto das onze horas, quando a mais idosa das moradoras terminava de descascar as batatas, a campainha trinou. Uma, duas, três vezes. “Diacho!”, rugiu Madame, que nem batom passara. – Marilda, atende! Leva à saleta e cai fora. Não esquece de fechar a cortina e acender a luminária; a pequena, bojuda.

Madame Judite entrou na saleta sem pressa e sentou-se à mesa, olhos semicerrados e ar calculadamente distante, tentando projetar uma figura próxima ao sublime. A luz iluminava-a de baixo para cima, e os traços faciais, com lábios grossos, maçãs salientes e estranhos olhos acinzentados, mostravam-se quase fantasmagóricos. Após alguns segundos fitando a mesa, ergueu a cabeça e lançou, olhando firme para um jovem de não mais de trinta anos: – Em que posso servi-lo? Por que procurou Madame Judite? Leitura da mão ou das cartas, ou ambas?

– N-não, nada, nada disso. Nem tive tempo de explicar. Vim só trazer esse envelope.

O ar de desagrado de Madame acelerou a complementação do visitante:

– O quartel da Polícia está em reforma. Vão trocar até os armários. O coronel mandou que o pessoal de cada setor esvaziasse escrivaninhas e escaninhos no seu ambiente de trabalho. Toco na banda e encontrei isso no fundo de uma gaveta que, pela poeira acumulada, não era aberta há anos, falou o jovem estendendo um grande envelope pardo.

Madame hesitou, mas se mexeu para pegar. Sem jeito, o rapaz assinalou: – Desculpe, mas não resisti e abri. Foi assim que pude descobrir esse endereço. Como a senhora verá, há uma partitura para flauta com a anotação: “Para Mariazinha, musa do alemão Barth”. O fraseado é de uma valsa, lindíssima – ah, eu toquei, pois sou flautista; desculpe de novo, não pude controlar… Descobri o endereço porque perguntei pelo alemão Barth no registro do quartel.

Madame, mais Maria Auxiliadora do que nunca, abriu o envelope e reconheceu a caligrafia. Olhos marejando rapidamente, ouviu do músico: – É a senhora? Ao balanço da cabeça, a sensibilidade do flautista aflorou com intensidade na pergunta: – Gostaria de ouvir? Sem esperar a resposta, tirou da mochila uma flauta transversa, abriu a partitura sobre a mesa, posicionou a luminária e aprumou-se na cadeira.

O que se ouviu foi magnífico, inundando o sobrado com uma sonoridade de extasiar, atraindo a avó e a filha, que ficaram de pé no vão da porta até as notas finais. Vários segundos transcorreram até que alguém se mexesse ou ensaiasse dizer algo. O silêncio foi quebrado pelo flautista:

– Lindo, não é? A senhora aceitaria inscrevê-la no concurso estadual de músicas instrumentais? O prazo termina na próxima semana. Eu faria tudo, até pagaria a inscrição se necessário, desde que me permitisse executá-la. O prêmio para a música vencedora é de dez mil reais. Olhe, não tenho dúvida de que…

A fala foi interrompida pelo trinar da campainha. Marilda projetou-se e voltou rapidamente, ar de vergonha misturada com preocupação: – Mãe!,o empregado do português está dizendo que o velho não vai esperar mais pela quitação da conta do armazém, que está enorme! Madame, aturdida, acreditou escutar: Walzer, Walzer!

E autorizou a inscrição.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. Na foto há um bule colocando água em um filtro de café. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: Pessoas erradas, e abaixo está escrito: Autor: Luiz Felipe Simas. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo bege.

Pessoas Erradas

A luz da manhã entrava pelo meu quarto enquanto eu enchia a chaleira de água para preparar o café. Eu gostava dessa rotina, pra ser sincero. Principalmente quando eu tinha companhia, como era o caso naquela semana. Ele estava sentado na cama, escrevendo no notebook, esperando a aula começar, enquanto eu organizava a minha pequena cozinha. Pelo o que me lembro, eu estava bem feliz naquela semana. Amava a companhia dele, e de uma maneira curiosa, sua presença servia como um farol para mim – em um momento tão difícil de me situar, passar tempo com ele sempre me acalmava, era como se o tempo fluísse normalmente com ele por perto.

Nossas conversas eram variadas, e eu as considerava enriquecedoras. Naquela manhã específica, no entanto, o que estava acontecendo era mais um desabafo unilateral do que uma conversa.

– É que as vezes eu acho que não vou conseguir acompanhar teu ritmo – Eu disse, um pouco hesitante, enquanto esperava a água esquentar e abria a cômoda para pegar o pó de café.

Ele me observou com um pouco de curiosidade. Seus olhos eram de um castanho profundo, e eu sempre me perdia dentro deles se o encarasse por tempo demais.

– Como assim? – Ele me perguntou. Sua voz era macia, e eu adorava ouvi-lo falando – A gente tá parado, e eu não vou pra lugar nenhum.

Eu hesitei um pouco, colocando o pó de café na xícara – uma colher de café, três colheres de açúcar. Eu nunca me esquecia de como ele gostava de que seu café fosse preparado, apesar de eu saber que ele beberia o meu café de qualquer forma. Ele não criticava as coisas que eu preparava para ele, mas eu sabia de suas preferências e prestava muita atenção em como preparar tudo o que ele gostava.

– Não agora, quando a quarentena acabar – Gaguejando um pouco, continuei – Você me fala das coisas que já fez, e pra mim a sua vida parece muito… movimentada sabe? – Gesticulei para o ar enquanto ia até a geladeira para pegar o açúcar – Você me conta das pessoas com quem saía e dos lugares que você ia… e eu acho isso muito legal, sabe? Mas não é algo que eu já tenha feito. A minha vida é muito parada – Suspirei enquanto levava o açúcar até a pia, sentindo uma pressão estranha no peito – Sei lá, quando penso em você e nas pessoas que você conhece, eu sinto que vou ficar pra trás.

Ele riu levemente, enquanto digitava algo no notebook.

– Eu entendo o que você quer me dizer, mas não precisa se preocupar com isso – Sua voz vindo em minha direção enquanto eu tirava o bule do fogo. Acho que de todas as pessoas com quem eu já havia conversado, ele era a que eu mais prestava atenção – A sua vida estar parada não é algo ruim, Lu. É questão de perspectiva – Ele hesitou por um momento, então continuou, sua voz um pouco mais grave – Quando a gente sente que nossa vida tá parada, a gente se envolve com as pessoas erradas, faz qualquer coisa pra sentir que a vida tem “movimento”. Mas isso não é exatamente bom.

Pessoas erradas, pensei, enquanto botava a água no pó de café, e misturava lentamente. Em um flash, memórias dos meus três últimos anos passaram atrás dos meus olhos, enquanto eu imaginava o quanto havia me envolvido com pessoas que tinham me prejudicado – física ou emocionalmente – somente porque acreditava que minha vida estava parada. Suspirei mais uma vez. O que estava fazendo agora? Eu estava me envolvendo novamente com uma pessoa que poderia me prejudicar, somente porque eu queria que minha vida tivesse algum tipo de movimentação? Quanto mais eu pensava na situação, mas insatisfeito eu ficava, até perceber que não estava totalmente feliz com aquela manhã. Ou com aquela conversa.

Por um momento, pensei em falar. Respirei fundo, organizei meus pensamentos – e parei. Não seria justo com ele dar voz a esse tipo de insegurança, quando tudo o que ele havia me demonstrado até o momento era honestidade pura. Eu não precisava sentir medo perto dele – ele era brutalmente sincero comigo, e mesmo assim, eu só ouvia coisas boas quando ele falava de mim. Certamente isso significava algo, não é?

Em silêncio, levei a xícara de café para ele, já que sua aula estava prestes a começar. Eu gostava de ser útil dessa maneira, e me importava muito com os estudos dele, assim como ele se importava com os meus. Dei um beijo em sua testa e servi-lhe o café, logo depois de desejar a ele uma boa aula.

Enquanto eu ia em direção ao meu computador para dar continuidade às minhas próprias atividades, eu ouvi sua voz novamente chegando até mim:

– Sabe Lu, eu não trocaria esses momentos de paz por nada – ele me disse, entre goles de café – Eu já tive uma vida muito movimentada pra saber valorizar quando eu tô como agora. Você não tem ideia do quanto eu tô feliz por estar aqui estudando, tomando café na sua cama. Eu te amo.

Naquele momento, algo se agitou dentro de mim. Algo que me deixou muito, muito feliz. Eu não sabia nomear direito. Eu estava me sentindo valorizado? Importante? Amado?

Me sentei na frente do computador, sem me virar. Um sorriso enorme estampava meu rosto, um calor agradável agora tomava conta do meu peito, onde antes só havia frio e dúvidas. Eu não tinha muito o que falar. Às vezes ele me dizia coisas que simplesmente me deixavam mudo.

Me virei, sorrindo calorosamente, olhando para a pessoa que eu amava – seu cabelo bagunçado, seus olhos castanhos profundos, e como a luz do sol batia nele, iluminava a pessoa mais incrível que eu já havia conhecido. Eu não tinha muito o que falar, mas pelo menos eu sabia que as palavras que estavam saindo da minha boca naquele momento eram as mais sinceras que eu já havia falado para alguém.

– Eu também amo você.

#paratodosverem Foto retangular na posição paisagem. A foto é em preto e branco e aparece a lateral do rosto de um homem e sua mão segurando um cigarro. Por cima da foto do lado esquerdo está escrito na cor branca: Título: A promessa, e abaixo está escrito: Autor: Luis Carlos Binotto Leal. No lado direito, também por cima da foto, há a logo da BU em branco com fundo azul claro.

A Promessa

Disfarçadamente fico escutando as pessoas falando em voz baixa ás minhas costas.
Sem fazer movimentos bruscos, viro o rosto para a direita e vejo alguém que parece ter
tido uma aparência jovem um dia e constato que definitivamente ele está morrendo.
O rosto é horrivelmente magro e os olhos, na face encovada e branca como giz, são
rodeados por centenas, milhares de rugas.
O cabelo, que resta em sua cabeça, profundamente grisalho, não é mais volumoso do que
as sobrancelhas e ambos parecem combinar com a pele branca e opaca.
Notando que estou a observá-lo, ele estende a mão ossuda na minha direção sinalizando
que gostaria de sentar-se.
Com passos rápidos alcanço-o, passo o braço ao redor de sua cintura e gentilmente o
ajudo a sentar, enquanto com olhar clinico, noto que as calças jeans que usa são muito
largas formando, junto com a camiseta vermelha, que parece pender sobre o corpo
esquelético, um tétrico dueto.
Ele faz um sinal com as sobrancelhas indicando que eu sente á sua frente.
Penalizado, atendo ao pedido.
Permanecemos sentados, exatamente um em frente ao outro. De um lado a vida, do outro
a morte.
– Você esta bem?;eu pergunto, de forma ridícula, encarando os olhos fundos.
– Já estive bem, um dia; ele responde, com voz áspera efraca
Ele apóia o queixo nas duas mãos, como se o pescoço não tivesse forças para sustentar a
cabeça e pergunta com voz desanimada: – Você é médico?
A pergunta faz com que eu me mexa na cadeira.
– Não. Vim visitar um amigo, mas cheguei tarde demais; menti, continuando a fitá-lo
Com voz cansada, ele pergunta: – Ainda tenho tempo?
Mantendo a sequência do inóspito diálogo e observando-o levantar a cabeça um pouco
mais e mantê-la sustentada por pulsos tão finos quanto um cabo de vassoura, eu digo,
com voz preocupada: – Tenho a impressão que seu tempo escorre rápido.
– No inicio…era puro prazer… – ele diz, e faz uma longa pausa.
Sua respiração é laboriosa e ele balança a cabeça, como se ela fosse cair, mas depois…
De repente ele luta para respirar, baixa os braços, fecha os punhos, abre-os novamente, e
seu corpo estremece.O rosto fica levemente escuro, ele procura desesperadamente tomar a respiração e por um
segundo, mesmo sabendo ser inútil, penso em ajudá-lo.
Ele bate no peito, como se estivesse forçando os pulmões a continuarem funcionando e
finalmente, soltando o ar pelo nariz, volta a respirar.
– Deixe-me…provar…uma última vez; ele diz, com voz rouca
– Não; eu digo, firme em minhas convicções, tentando encerrar o assunto
Sua respiração é a mais anormal possível, os olhos estranhos estão vermelhos, úmidos e
não tenho certeza se está implorando para ser atendido ou se refazendo da crise.
– Por favor; ele suplica, com voz engasgada, comprimindo as mãos uma na outra, até que
os ossos dos dedos parecem ficar completamente expostos e uma lágrima aparece no
canto de seu olho direito
Fico comovido, sentindo meu coração contorcer-se perigosamente, mas encontro forças
para continuar negando.
Subitamente, fui arrancado de minhas preocupações pelo som de passos que se
aproximavam muito rápido.
– Não deixe que me levem”; ele diz, com voz entrecortada, mais pálido do que nunca
Antes que eu pudesse responder, um dos homens fez um sinal para que eu permanecesse
sentado e agradecido, afundei o corpo na cadeira.
Ele combateu desesperadamente o desejo de chorar e cedendo a ajuda dos dois homens,
levantou-se sem protestar e os três encaminharam-se para o fundo do corredor, formando
um bizarro cortejo funerário.
Antes de desaparecerem completamente, o homem magro, virou o rosto pálido, vazio e
cheio de angústia e falou com voz tão fraca que quase não consegui entender:
– Promete pensar em mim?
– Prometo rezar; respondi rapidamente
Esperei alguns minutos com a cabeça baixa, os cordões de meus sapatos tornando-se de
repente, o centro de minha vida.
Assim que acabou minha pausa dolorosa, utilizando-me de um lenço de papel, enxugo os
olhos e corajosamente vou á procura do quarto onde ele fora literalmente carregado.
Entre as sombras do corredor visualizo uma porta semi-aberta.
A penumbra do ambiente me diz ser ali o lugae e sem respirar, entro.
Ele está dormindo, no quarto sem luz. A TV está desligada e o quarto inteiro silencioso.
Diminuo a proximidade e presto atenção em seu peito, esperando ver algum movimento,
mas não noto nada. Tudo está quieto lá fora e dentro do quarto.- Então é assim que eles morrem; eu penso, sentindo minha pele arrepiar-se com o
pensamento
Ele tosse, faz um movimento, e acho que está querendo me dizer que continua vivo.
Encosto minha perna em uma cadeira e sentindo as pernas bambas, sento.
Observo melhor o corpo magro, quase invisível, sob os lençóis.
Ele resmunga e faz alguns movimentos e eu me levanto para sair, mas sinto uma
inesperada tontura. Meus joelhos se dobram um pouco e tento equilibrar o peso do corpo.
Não tenho tempo para sentimentos ou recriminações. Não tenho tempo para sentir medo.
Sem prolongar meus pensamentos, com passos nervosos, saio do quarto e do prédio.
Na rua a tarde é fria e nebulosa e as pessoas estão encolhidas dentro de sobretudos.
A uma quadra de onde estou sei que existe um restaurante e me encaminho para lá.
Ao chegar, discretamente olho ao redor e vejo um grupo de pessoas formado por jovens
e crianças sentados em frente ao restaurante, tomando refrigerantes e apesar do frio,
conversando animadamente.
Eu os observo e espero, com a respiração ofegante, escondido como se estivesse sendo
perseguido por um grupo de homens armados, lembrando que tempos atrás minhas
condições físicas eram excelentes.
Antes eu corria e praticava esportes, agora me sinto um fracote, mesmo depois de uma
caminhada de alguns metros ou a subida de único lance de escadas do prédio onde moro.
Um deles se levanta, espreguiça-se e caminha devagar em direção ao final da rua e os
outros, depois de se entreolharem o imitam.
Rapidamente, eu avanço até o caixa do restaurante, avalio o atendente – os olhos são
negros e sérios, as pupilas misturam-se as íris – e concluo que ele é confiável, mas antes
que faça meu pedido, ouço risadas as minhas costas. Os jovens retornaram.
Em um instante de real pânico, com as mãos tremendo, dou um passo atrás e volto a me
encostar na parede, sentindo a ansiedade penetrar até as minhas entranhas.
Quieto em meu canto, seco o suor da testa e observo que de repente o restaurante tomou
ares de um lugar sinistro e amedrontador, mas para meu alívio, ouço um deles dizer:
– Esqueci de comprar um refrigerante para levar.
Sem qualquer comentário o homem atende ao pedido, e em segundos eles desaparecem.
Lembro as últimas palavras que dissera para o desconhecido e a lembrança me feriu com
seu absurdo e infantilidade.
Sinto novamente a mesma tontura, mas me mantenho firme, apoiado na parede, agora sob
o olhar curioso do atendente de caixa.- Posso ajudá-lo, senhor?; ele pergunta, sorrindo e ao mesmo tempo parecendo
extremamente cansado, como se estivesse prestes a adormecer ali mesmo
Recuo imediatamente contra a parede, como se quisesse atravessá-la e permaneço
hesitante entre aceitar a ajuda ou simplesmente ir embora.
Por alguns minutos fico imóvel, fitando-o parcialmente com o canto dos olhos.
Então, depois de esfregar os olhos para completar a imagem, avanço até o balcão do caixa,
solto uma risada curta, embaraçada, pronto para desfalecer e estupidamente pergunto:
– Você vende cigarros”
Os ombros dele estremecem num sobressalto e como num passe de mágica o atendente
faz o sorriso desaparecer do rosto.
Ele parece completamente desperto agora, e eu não compreendo a expressão com que me
olha, os olhos injetados, visivelmente chocados.
De repente, ele estende a mão, toca meu braço com força, aprisionando-o, aproxima o
rosto do meu, agigantando-o e diz, com a voz uma oitava mais alta, as palavras escaldando
o ar:
– Você está louco? Quer acabar naquele hospital de vitimas do fumo daquele prédio ali
na esquina?
No silêncio que se seguiu, minha garganta se contraiu, meus lábios se separaram e senti
uma letargia esmagadora privar-me de algum pensamento racional.
Não podia mais continuar mentindo.
Era o lugar onde eu estivera. Não fora visitar amigo algum, mas, sim ver, se voltasse a
fumar, o que estava reservado para o meu futuro.
– Desculpe; eu digo, humildemente, com um ar de genuíno arrependimento
Tudo acontece rapidamente. Minha pergunta ridícula, a resposta cheia de sentimento, os
olhares meu e dele, tudo não dura mais do que alguns segundos.
Embora muito breve, o momento fala por si.
Sem esperar, saio, atravesso a rua lentamente, encosto-me a um poste, assustado, trêmulo
e cansado, fecho os olhos, abaixo a cabeça e imagino um grupo de homens com expressão
severa e ternos escuros carregando meu caixão para o último repouso, num dia frio de céu
escuro, enquanto um padre balbucina um trecho da Bíblia.
Por fim abro os olhos, levanto a cabeça e tento sair mentalmente do lugar, desejando estar
em outro lugar qualquer, mas não consigo, então resolvo fazer minhas preces ali mesmo,
pedindo que eu tenha forças para manter minha promessa de não voltar a fumar.