Leitura crítica, verdade, confiança e desinformação

*Texto adaptado do prefácio da obra Leitura crítica na contemporaneidade: abordagens multidisciplinares. Disponível em: http://cidad.bu.ufsc.br/e-book-leitura-critica-na-contemporaneidade/.

Em meio à quantidade de informações recebidas hoje em dia, é muito comum perceber certa confusão nas narrativas e discussões que estão, principalmente, nas redes sociais e plataformas digitais de comunicação. Dentro desse universo informacional ou‘infosfera’ (FLORIDI, 2010), a verdade parece ser cada vez menos um conceito objetivo – flexionada conforme pontos de vista e opiniões pessoais. Além disso, a desinformação marca uma frequente presença nos conteúdos consumidos, misturada a fatos, julgamentos de valor e às diversas criações do imaginário social e das inovações linguísticas que a cibercultura e a dialética humana permitem. Com o tempo, percebe-se que a leitura daquilo que está diariamente nos dispositivos portáteis conectados demanda um pouco mais do que a decodificação e interpretação direta do texto. É quando a leitura requer mais cuidado e atenção, exigindo algum aprofundamento investigativo; é quando ela precisa ser feita de uma forma mais crítica.

Mas o que vem a ser, afinal, a leitura crítica? A palavra ‘crítica’ pede certos contextos para o seu significado fazer sentido. No entanto, por algum motivo, parece sempre ter uma conotação dura, um soar pesado. É como se não fosse desejada, mesmo quando se diz que “toda crítica é bem-vinda”. Ela pode representar um papel desempenhado profissionalmente (o crítico), uma entidade onipresente (a crítica) ou determinar um limiar (a situação crítica). Em outra vertente de sentido, pode significar aquilo que se faz aos outros, mas que não se quer para si mesmo. E, ainda, pode ser uma característica necessária a um momento específico como agora.

Compreender a leitura crítica atualmente é entender as mudanças causadas pelo cotidiano virtualizado – aquele composto de dinâmicas decorrentes do uso das tecnologias e redes de compartilhamento de informações. Tal cotidiano está composto por fake news, pós-verdades, deepfakes, fatos alternativos e tantos outros termos que provêm das estratégias de desinformação. A presença da desinformação, assim, exige que a leitura extrapole o processo de entendimento sintático e semântico do texto para buscar outras características como a sua confiabilidade, ou seja, o seu comprometimento com aquilo ao qual se refere. Portanto, a leitura crítica é um processo investigativo de busca pela confiança e pela verdade, de acordo com filósofos como Luciano Floridi (2011), por exemplo, a verdade é um critério essencial para algo ser, inclusive, considerado como informação.

A leitura crítica exige um entendimento feito em camadas e requer que questionamentos sejam levantados a si e ao que é apresentado informativamente. Demanda que o contexto de produção e disseminação da informação seja considerado e analisado. Precisa que seja constantemente relembrado de que a informação é tão feita para todos, como é também criada por todos: dos blogueiros aos youtubers, da Wikipédia aos posts em redes sociais, a informação é objeto imaterial que pode ser gerado também por perfis falsos e algoritmos.

Se for possível expandir a metáfora produzida por José Saramago em Ensaio sobre a cegueira, pode-se adaptar a epígrafe do romance para os fins aqui propostos: Se podes ler, compreenda. Se podes compreender, questione – no original: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” (SARAMAGO, 2014, p. 9).

No entanto, como tudo parece ser ambíguo e duplo na vida informacional das redes e ambientes on-line, há que se traçar algumas demarcações. Questionar criticamente não é a contestação pelo simples ato de afrontar, nem a desqualificação opinativa – tão presentes nas discussões das redes sociais e ponto de partida de teorias de conspiração, negacionismos científicos e perspectivas revisionistas. Isso porque, nas últimas se ausenta algo que é essencial na primeira: o fator ético que produz a autocrítica. Ler criticamente é se autoexaminar e entender que se está influenciado por crenças (religiosas, políticas, ideológicas, entre outras)e emoções (principal foco dos discursos de pós-verdade) que podem distorcer a leitura correta da informação ou fazer cair em armadilhas cognitivas provocadas pela desinformação. Por exemplo, pesquisas como a de Mercier e Sperber (2011) tratam do chamado viés de confirmação, que é uma tendência comportamental que faz com que o processamento mental seja afetado pelo sistema de crenças e valores que cada indivíduo tem(fator que influencia consideravelmente, entre outras coisas, a forma como se lê e se busca informações).

Dentro do atual contexto, ler criticamente envolve escrever criticamente também, pois todo leitor é também um possível difusor de informação, seja no processo do simples repasse daquilo que é lido, seja em sua manifestação pessoal sobre o assunto em sua vida virtual/real. Há uma integração entre tudo que é produzido e consumido – e tal integração também se faz presente no esfacelamento das barreiras que dividem o leitor do autor. Nesse sentido, é imprescindível uma tomada de consciência das dinâmicas de comunicação presentes no jogo semântico das redes. É importante, por exemplo, perceber as diferenças entre fatos, argumentos e opiniões – distinções muito didáticas desse tipo são feitas em Carraher (2011) –; ou entre os tipos de relatos, de fontes e de protagonistas; ou ainda, entre os mecanismos que agem na produção da interação nas mídias, como o uso de bots para automatização de conteúdos e impulsionamento de publicações.

A leitura crítica avalia certas qualidades de uma informação. Porém, ler criticamente não pode ser reduzido a um mero julgamento de valor. É, em última instância, uma análise da honestidade do texto, do quanto ele está cumprindo aquilo que promete e do quanto está comprometido com a realidade. É o estabelecimento de um vínculo de confiança entre autor e leitor para criar uma experiência benéfica em direção ao conhecimento. É a busca pela verdade, ainda que nunca se chegue à sua totalidade ou que ela seja temporária –pois definir o que é verdade é um tanto difícil, mas saber que se quer alcançá-la é algo de mais fácil consentimento.

Verdade e confiança são concomitantes. Uma precisa da outra para poder existir. Sem alguma verdade, não tem como uma relação de confiança iniciar. Sem confiança, nenhuma verdade se mantém. E ainda que se busquem verdades objetivas, é o processo subjetivo que estabelece o entendimento sobre suas existências. Não há como constituir a verdade sem a sua compreensão pelo sujeito; e para a verdade estar presente é preciso também que o seu conceito não se perca no tempo.

A leitura crítica é, sobretudo, a crítica da leitura. É a compreensão de uma mudança de hábitos necessária para participar socialmente com autonomia, responsabilidade e liberdade. Ler criticamente é ato individual, mas também construção coletiva. Não deveria precisar desse adjetivo (a crítica tem que estar subentendidano substantivo e no verbo). E ler, ainda que envolva reconhecer a mentira como parte do mundo humano, não deve se contentar com ela.

O linguista Harald Weinrich (2017) diz que o significado de uma palavra, entre outros atributos, está relacionado com características que são relevantes para determinada comunidade, ou seja, as expectativas em comum que um coletivo tem quando ouve ou lê um termo. Por exemplo, quando resistência é comunicada, alguns conceitos são automaticamente associados (em maior ou menor nível), como: existência, enfrentamento ou força. A crítica da leitura pede por um constante reexame desse universo conceitual. E, portanto, é importante que, diante do cenário que se apresenta, não se abdique da verdade pela pós-verdade, e nem se obtenha informação de desinformação, ainda que seja apenas pela simples separação silábica. Que a verdade ainda remeta à realidade, e que confiança não seja uma palavra em vão: são preocupações linguísticas e filosóficas – mas também desejos de uma vida indissociada do conhecimento.

Referências

CARRAHER, David W. Senso crítico: do dia a dia às ciências humanas. São Paulo: Cengage Learning, 2011.
FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.
FLORIDI, Luciano. The philosophy of information. Oxford: Oxford University Press, 2011.
MERCIER, Hugo; SPERBER, Dan. Why do humans reason? Arguments for an argumentative theory. Behavioral and Brain Sciences, v. 34, n. 2, p. 57-74, Apr. 2011.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira:romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
WEINRICH, Harald. Linguística da mentira. Florianópolis: UFSC, 2017.

 

Leonardo Ripoll

leonardo.ripoll@ufsc.br
Bibliotecário BU/UFSC
Serviço de Circulação e Recuperação da Informação
Comissão de Confiabilidade Informacional e Combate à Desinformação no Ambiente Digital

Março, 2021